Não é de agora que assim penso, por isso em Março de 2005 (quando não era sequer vice-presidente do CPA) elaborei por mim mesmo um texto em que verti a minha reflexão sobre a questão da utilização do espaço público urbano por parte das autocaravanas.
Funcionava então no âmbito da Federação de Campismo um grupo de trabalho para o autocaravanismo de que o CPA fazia parte, mas que em 2 anos de actividade (?) nada de concreto tinha produzido. Ofereci o texto que escrevi ao CPA que o submeteu ao dito grupo de trabalho. A FCMP adulterou-o modificando-o a seu belo prazer sem me dar explicações e... num cortejo a que se juntou Ruy Figueiredo (à data, tal como agora, presidente do CPA) foi entregá-lo ao presidente da Comissão de Turismo da Assembleia da República (então, tal como agora, presidida pelo deputado Mendes Bota, eleito nas listas do PSD pelo Algarve).
Algumas das particularidades do texto têm a ver com o facto de ter sido escrito para o CPA reforçar o seu papel dentro da FCMP, mas lido 4 anos depois continuo a achar que a sua maior limitação é a de se limitar a considerar o espaço público urbano. Porém, julguem-nos vocês: não quero ser juiz em causa própria.
Aquilo a que assistimos nas últimas semanas obriga-me a afirmar aqui que não tenho pretensões a iludir ninguém fantasiando como se tivéssemos legislação que não temos, nem pretendo mistificar as coisas para tentar tapar o sol com a peneira escamoteando os problemas que podem vir a resultar para o autocaravanismo da aprovação da recente Portaria que regulamenta o campismo.
Mas lamento profundamente que o CPA (que tem revelado uma completa ausência de ideias sobre a matéria) se tenha permitido deixar o seu presidente Ruy Figueiredo ir ontem almoçar com o Sr. Deputado Mendes Bota, pela mão das almas errantes de carvalho-seco DeAlém.
Todos teríamos ficado a ganhar se Ruy Figueiredo tivesse trocado o almoço pela dinamização de um debate sobre o assunto (por exemplo tomando este documento como ponto de partida) e se posteriormente fosse pelo seu próprio pé entregar as propostas do CPA para suprimir a lacuna jurídica do autocaravanismo em Portugal. Assim... limitou-se a perder a noção das suas responsabilidades e estatuto institucional.
Por tudo isto, sem pretensões de exibir títulos honoríficos de Prof. Doutor, mas em respeito pela memória colectiva do movimento autocaravanista e fiel ao dever de serviço público que me animou quando o escrevi, aqui submeto ao escrutínio público o texto a que tenho estado a referir-me.
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1. Razão de ser deste diploma
O autocaravanismo é um movimento de expressão europeia em acelerada expansão, com indiscutível relevância económica, social e cultural para o desenvolvimento local, especialmente das regiões de menor densidade turística. O autocaravanismo não é uma espécie de turismo de indigentes, até pelo seu custo, é uma filosofia de vida.
Actualmente circulam na Europa cerca de 8 milhões de caravanistas e 2 milhões de autocaravanistas. O número de autocaravanistas tem vindo a crescer na ordem dos 20% ao ano, formando uma enorme massa de consumidores itinerantes seja de combustíveis, de bens alimentares, de artesanato e outros produtos tradicionais, seja ainda de bens culturais. Mas, sobretudo, os autocaravanistas constituem agentes activos de divulgação dos atributos turísticos e da identidade cultural das comunidades que visitam e que bem os recebem. Muitas vezes as suas fotos e vídeos das paisagens e gentes que conheceram “correm mundo” com direito a relato boca-a-boca, seguramente a forma mais eficaz de marketing territorial.
A inexistência de regulamentação legal específica das condições de permanência na via pública de autocaravanas conduz a duas ordens de problemas: a falta de enquadramento legal que sancione comportamentos menos próprios de alguns autocaravanistas; a multiplicação de expedientes normativos e de práticas equívocas de autoridades administrativas locais e, consequentemente, das forças de segurança. Ora, proibir o estacionamento urbano das autocaravanas significa muitas vezes impedir o acesso dos autocaravanistas às cidades que desejavam visitar, pois este é o seu único meio de transporte. Por vezes a necessidade de estacionamento decorre de razões logísticas (ir à farmácia, ao mercado, etc.) ou mesmo de condições de segurança na via pública, por exemplo, quando o condutor necessita imperiosamente de retemperar energias antes de prosseguir viagem. A existência de parques de campismo bem localizados e com boas condições de acolhimento é muito importante (infelizmente, em Portugal apenas meia centena dos cerca de 200 parques têm condições para receber autocaravanas), mas não uma alternativa ao uso regrado das vias urbanas por parte das autocaravanas.
Atentos à necessidade de conciliar o contributo do autocaravanismo para o desenvolvimento sócio-económico com a necessidade de disciplinar a utilização do espaço público pelas autocaravanas, vários países europeus (veja-se, particularmente, o caso da Alemanha, França, Itália e Espanha) têm vindo a introduzir na sua ordem jurídica interna normativos regulamentadores do autocaravanismo. Paralelamente, começa a desenhar-se um movimento que reclama a regulamentação da matéria em sede da UE.
No caso português, a relevância da questão decorre quer da necessidade de bem receber os autocaravanistas estrangeiros que nos visitam (evitando conflitos com as autoridades locais que a ninguém aproveitam), quer ainda da expressão e maturidade organizacional do autocaravanismo em Portugal.
Actualmente existem em Portugal cerca de seis mil e quinhentas autocaravanas registadas, a que estarão associadas na ordem das vinte e cinco mil pessoas que regularmente, e ao longo de todo o ano, se deslocam pelo país. A estes números acrescem os muitos (seguramente mais do que os portugueses) autocaravanistas estrangeiros que nos visitam durante o ano, frequentemente os utilizadores quase exclusivos dos parques de campismo no Outono-Inverno e mesmo na Primavera. Especialmente dos parques que não servem de apoio à praia.
Pelas razões anteriores, elaborou-se a presente proposta de diploma que visa disciplinar as condições de utilização do espaço público por parte das autocaravanas, sendo norteado pelos seguintes desígnios:
- Dignificar socialmente os autocaravanistas através da sua responsabilização cívica pelas práticas e comportamentos que assumem na via pública, na certeza de que a responsabilização é o caminho para a emancipação e demarcação da imagem social do autocaravanismo relativamente a práticas culturalmente conotadas com certas minorias étnicas e com atitudes de menor civilidade e urbanidade;
- Distinguir claramente a diferença entre estacionar e acampar com autocaravanas na via pública, estabelecendo-se a proibição de acampar em contrapartida à liberdade de estacionar no respeito pelas normas gerais de estacionamento dos veículos ligeiros, em condições que funcionalmente não prejudiquem o uso da via pública;
- Distinguir entre o uso da via pública por parte das autocaravanas e o uso indevido do espaço público por parte dos autocaravanistas. A ideia é a de punir comportamentos em lugar de proibir o estacionamento. Assim, estabelece-se o princípio da não discriminação das condições de utilização da via pública por parte das autocaravanas relativamente aos outros veículos ligeiros, e definem-se claramente as obrigações e o código de conduta a observar pelos autocaravanistas, sob pena de contravenção com moldura sancionatória explícita;
- Estimular as entidades públicas e privadas, especialmente as Autarquias Locais, a contribuírem para a promoção das condições ambientais, através da criação de zonas de acolhimento para autocaravanas dotadas de áreas de serviço específicas, à semelhança do que já acontece em vários países europeus.
2 - Objecto
Este diploma define as obrigações do autocaravanista e as condições legais de estacionamento e pernoita de autocaravanas na via pública urbana, no respeito pela lei geral, particularmente do Código da Estrada e demais normativos regulamentadores da prática de campismo. Para tal, entende-se por:
2.1 - Autocaravana, qualquer veículo motorizado classificado na categoria de automóvel ligeiro, homologado para circular na via pública e ser utilizado como alojamento temporário por turistas itinerantes.
2.2 - Estacionamento, corresponde à situação em que a autocaravana se encontra imobilizada na via pública, no respeito pelas normas de estacionamento definidas no Código da Estrada, independentemente da permanência de pessoas no seu interior.
2.3 - Considera-se acampamento, e não estacionamento, a situação em que a autocaravana se encontra imobilizada na via urbana e, cumulativamente, se verifica alguma das seguintes condições:
a - A autocaravana apoia-se no solo com qualquer outro meio (pés estabilizadores,...) que não os próprios pneus;
b - A autocaravana ocupa um espaço que vai para além do seu perímetro, salvaguardados os elementos salientes autorizados, como espelhos, porta-bicicletas, etc. Considera-se ocupação do espaço extravasando o perímetro do veículo situações como a abertura de janelas para o exterior, o uso exterior de toldos, mesas, cadeiras e similares;
c - A autocaravana esteja a derramar fluidos provenientes do habitáculo.
3. Obrigações do autocaravanista
O autocaravanista é um campista itinerante amante da natureza e respeitador da cultura das comunidades locais. Como tal obriga-se a adoptar um código de conduta pautado pela cordialidade de trato e pelo civismo. Em particular, são obrigações do autocaravanista:
3.1 - Respeitar as normas legais proibitivas da prática de “campismo selvagem”;
3.2 - Proteger os recursos naturais e o meio ambiente em geral;
3.3 - Abster-se de emitir ruídos de qualquer tipo, nomeadamente provenientes de aparelhos rádio, TV, etc.;
3.4 - Não abandonar lixo ou quaisquer outros objectos no espaço público, salvo nos recipientes pré-definidos para o efeito;
3.5 - Não derramar no solo águas sujas de lavagens, ou outras;
3.6 - Não poluir a rede de esgotos pluviais através do despejo de sanitas químicas;
3.7 - Não proceder ao estendal de objectos ou de alguma forma marcar o espaço físico de acolhimento para além do estritamente necessário;
3.8 - Garantir que os animais domésticos, de que eventualmente se façam acompanhar, não incomodem outras pessoas nem sujem o espaço;
3.9 - Na estrada, respeitar as regras de segurança e ter uma atitude de colaboração com os restantes condutores, nomeadamente, facilitando a ultrapassagem;
3.10 - Ao estacionar, assegurar-se que não cria dificuldades funcionais, nem põe em causa a segurança do tráfego motorizado ou dos peões;
3.11 - Na via urbana evitar estacionar por forma a tapar a vista de monumentos e/ou de estabelecimentos comerciais.
4 - Condições de estacionamento e pernoita de autocaravanas
4.1 - Pelo presente proíbe-se aos autocaravanistas a prática de campismo no espaço público urbano fora dos locais expressamente concebidos e licenciados para o efeito. Para tal, entende-se aqui por acampar a situação em que a autocaravana se encontra imobilizada e de alguma forma daí decorra a ocupação do espaço público para além do estritamente necessário ao estacionamento, nos termos supra definidos em 2.3.
4.2 - As autocaravanas podem estacionar e pernoitar na via pública nas condições legais de estacionamento definidas para os restantes veículos ligeiros, isto é, desde que não exista um sinal que expressamente proíba o estacionamento de veículos ligeiros. Para o efeito, atente-se na forma como antes (secção 2) se distinguiu estacionamento de acampamento, bem como nas obrigações do autocaravanista enunciadas na secção anterior.
4.3 - Em circunstâncias particulares, expressa e especificamente justificadas pelo interesse público, poderão os Regulamentos Municipais de Trânsito e circulação urbana, introduzir restrições ao estacionamento de autocaravanas em certos espaços da via pública. Tais restrições deverão decorrer de razões de segurança e/ou funcionalidade da circulação na via pública associadas à visibilidade ou à exiguidade do espaço físico. Estas restrições poderão ter um carácter pontual ou geral.
a - As restrições de carácter pontual dizem respeito a interdições do estacionamento em locais específicos durante períodos de tempo não superiores a 4 horas/dia, exceptuando-se do presente os terreiros de realização de feiras e/ou festividades, durante o período correspondente à realização das mesmas.
b- As restrições de carácter geral respeitam a interdições permanentes e com maior abrangência geográfica, ainda que necessariamente com um âmbito sempre inferior a metade da área do perímetro urbano. Adicionalmente, a possibilidade da Autarquia poder estabelecer estas restrições de carácter geral fica condicionada à existência, a menos de 2 kms do local de proibição, de parques de estacionamento reservados a autocaravanas, eventualmente em conjunto com autocarros de passageiros, ou de zonas de acolhimento para autocaravanas, conforme definidas na secção seguinte.
c- Eventuais restrições de estacionamento a definir por postura municipal não podem ter por critério a ocupação/desocupação interna do veículo, nem introduzir discriminação das autocaravanas face a outros veículos de semelhante dimensão.
5 - Zonas de acolhimento e áreas de serviço para autocaravanas
5.1 - zonas de acolhimento para autocaravanas constituem um espaço plano concebido para permitir o estacionamento de curta duração ou a pernoita de um reduzido número de autocaravanas (na ordem de uma dezena), dotado de uma área de serviço para autocaravanas.
5.2 - Área de serviço para autocaravanas é uma infra-estrutura de saneamento funcionalmente pensada para autocaravanas, devendo estar dotada de WC químico, espaço de despejo de águas sujas, ponto de abastecimento de água potável e, eventualmente, de tomada eléctrica. Podem ser criadas áreas de serviço, não integradas em zonas de acolhimento para autocaravanas.
5.3 - No licenciamento das condições de instalação e de funcionamento dos Parques de Campismo deve observar-se a obrigatoriedade destes disporem:
a. - de uma zona dotada das devidas condições e reservada para autocaravanas com permanência não superior a uma noite;
b - de uma área de serviço para autocaravanas com boas condições funcionais e localizada em zona de fácil acessibilidade às autocaravanas.
5.4 - Até ... (definir período de adaptação) as estações de serviço de combustíveis com mais de ... (5?) bombas de abastecimento deverão passar a dispor de áreas de serviço para autocaravanas.
5.5 Os serviços prestados nas áreas de serviço e nas zonas de acolhimento podem ser gratuitos ou pagos, independentemente da sua localização e da sua natureza pública ou privada. A entidade responsável pela gestão da infra-estrutura pode estabelecer um limite máximo para o estacionamento, embora com uma duração nunca inferior a 24 horas.
5.6 - No licenciamento das zonas de acolhimento e áreas de serviço aplica-se por analogia o estabelecido no Regulamento de Obras Particulares. Por razões funcionais, a implantação das áreas de serviço devem ter por referência o desenho e as dimensões mínimas descritas no esquema contido no Anexo A.
5.7 - Em caso de dúvidas, devem as entidades competentes (públicas ou privadas) solicitar a colaboração da FCMP que em articulação com o CPA assegurarão o apoio de consultoria à implantação destas infra-estruturas.
5.8 - No Anexo B sugere-se a adopção de algumas figuras gráficas de suporte à sinalização das zonas de acolhimento e áreas de serviço para autocaravanas.
6 - Sanções
É preciso definir a moldura penal correspondente à infracção do aqui estabelecido, bem como definir a entidade orgânica responsável pela gestão do presente diploma.
?? Quando existam, devidamente sinalizadas, áreas de serviço para autocaravanas a menos de 5 km do local, as infracções ao definido em 3.5 e 3.6 serão punidas com o dobro da multa.
7 - Norma revogatória
Ficam revogadas todas as disposições legais anteriores contrárias ao presente diploma. Consideram-se desde já feridos de nulidade e sem qualquer efeito todos os normativos introduzidos por regulamento autárquico que se encontrem em inobservância do supra estipulado.
Raul Lopes
(Março de 2005)
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