segunda-feira, 9 de março de 2009

Uma escapadela ao passado: de Trás-os-Montes a Macau...

Quando penso em Trás-os-Montes é inevitável que me lembre do amigo Urbino, uma das boas heranças que recebi do autocaravanismo. É seguramente o autocaravanista mais distinto que respira para lá do Marão, e é ao seu capital social, empenho e paciência para me aturar que todos nós devemos a existência da Área de Serviço de Torre de Moncorvo.
Mas o seu estatuto social na região rivaliza com a modéstia e noção de serviço colectivo que empresta aos seus gestos. Por isso estou certo que se o tenho consultado não aprovaria que eu escrevesse estas palavras, o que as torna ainda mais merecidas.
Desta vez o colega, companheiro e amigo Urbino partilha connosco uma fresta da panóplia de sentimentos, sabores e memórias que lhe afluíram numa fugaz viagem de autocaravana por entre os montes e vales que o viram crescer.
A Tribuna Autocaravanista sente-se honrada por conferir projecção a esta crónica em registo de quem é e se sente genuinamente autocaravanista. Estou certo que no final da leitura você também se vai sentir grato(a) ao distinto Repórter Itinerante da TAC por terras de Trás-os-Montes.

Raul Lopes


O período de Carnaval é sempre uma ocasião propícia para um passeio mais alongado, quando o tempo o permite, como foi o caso deste ano. Normalmente, nesta época alternamos entre a neve, se está frio, e a amendoeira em flor, se o sol aquece.
Este ano, resolvemos sair para as amendoeiras em flor, regressando a terras que foram as minhas de nascença, e aproveitando para recordar o I Encontro de Autocaravanas em Moncorvo, em 2008. Saídos de Bragança já perto do meio-dia, passámos por um grupo de autocaravanas, em Podence, um pouco depois da albufeira do Azibo, que julgamos ser do CAS (Clube Autocaravanista Saloio), e dirigimo-nos para a foz do Sabor, que dá o nome à aldeia.
Depois dos montes e da serra de Bornes, com perspectiva sobre todo o vale da Vilariça, passámos por Vila Flor, uma vila pequena mas simpática, com um museu digno de visita e um miradouro que nos espraia a vista por horizontes quase infinitos.
Descemos até à fábrica das águas Frise, bem conhecidas da publicidade, percorremos um dos vales mais férteis do país – o vale da Vilariça –, atravessámos as suas vinhas que se prolongam até à Foz do Sabor, e soube bem chegar à confluência do rio Sabor com o rio Douro para saborear um bacalhau com grelos, no meio de uma paisagem que nos deixa sempre rejuvenescidos na alma. Uma garrafa de Quinta de Vila Maior - cujo produtor é daquela aldeia, mesmo ao lado da vinha do célebre Barca Velha - deu ao bacalhau com grelos um sabor que rivaliza com qualquer outro petisco do mais caro restaurante do mundo.
Rumando para Moncorvo, foi tempo de visitarmos a Feira do artesanato, onde comprámos umas bugigangas e uns doces de amêndoa, passando ainda pelo comércio local para reabastecer a garrafeira com uma caixa do “Casa da Palmeira”, um irmão mais em conta do Quinta de Vila Maior. Enquanto a garrafa deste vai para 18 euros, a garrafa daquele fica-se pelos 7.50 euros

30 anos depois…de Moçambique
Saímos de Moncorvo pelas 5 da tarde com ideias de pernoitar em Foz Côa. Só que a vantagem das planificações em autocaravana é poder desplanificá-las a cada passo. E assim fizemos. Em vez de pararmos em Foz Côa, seguimos para Celorico da Beira, mais concretamente para a aldeia de Vale de Azares (se fosse supersticioso não tinha ido), passando ao lado da Meda e de Trancoso. No Lar de Idosos da aldeia encontra-se um casal amigo da família da minha mulher, desde os tempos de Moçambique, onde uns e outros mourejaram em busca de melhores dias.
Ao prazer do reencontro e da recordação doutros tempos e doutras vidas, juntou-se o prazer da descoberta de um humanismo autêntico, feito de generosidade e de pequenos nadas, que ainda é possível descobrir nas nossas aldeias, mas cada vez mais difícil de descortinar nos meios urbanos, feitos de individualismos crescentes e de egoísmos que fecham as pessoas em autismos de solidão e sofrimento.
50 anos depois … de Macau

No dia seguinte partimos sem grandes planos, de novo em direcção ao Douro e às amendoeiras em flor. Passámos por Pinhel, que aproveitámos para conhecer. Uma cidade pequena, mas cheia de história, testemunhada ainda por vários solares e pelo que resta de um castelo que D. Dinis mandou reconstruir e que, ao longo dos séculos, foi sempre fiel aos reis de Portugal em todas as escaramuças em que estes se viram envolvidos com os reis do país vizinho.
E já que de um passeio de memória se tratava, lembrei-me que eram dali o Leopoldo Pinheiro e o José Coelho Matias. Logo no primeiro café em que perguntei por ele, obtive as informações necessárias para o procurar e reencontrar num abraço que recordou o primeiro encontro de 50 anos atrás, nas terras longínquas de Macau. Foi com alguma piada que recordei o facto de sermos ambos naturais de dois concelhos quase vizinhos – eu, de Moncorvo, e ele, de Pinhel – e nos termos conhecido a milhares de quilómetros de distância, aquela a que Macau se encontra. São as voltas que a vida dá!...
Enquanto bebericámos um café, pusemos as vidas em dia e recordámos professores e colegas.

A vida feita de conversa… da treta?...

Entretanto tínhamos combinado com o presidente da Câmara de Moncorvo que, à noite, estaríamos no Cine-Teatro local para assistir à “Conversa da Treta” do António Feio e do José Gomes. Mesmo assim, ainda tivemos tempo para almoçar e descansar em Figueira de Castelo Rodrigo, e passar depois por Almendra, Castelo Melhor e, de novo, Foz Côa. Que deslumbramento de paisagens!... Os olhos não se cansam de as contemplar e a alma de as perscrutar!...
Antes do espectáculo, novo encontro feito de memórias. O Rogério, meu primo, - que me acompanhou até Macau e comigo por lá estudou 5 anos, mais tarde fez-se professor, jornalista do Diário de Lisboa, do Jornal, da Visão, da Capital, do Rádio Clube Português – também estava em Moncorvo, por coincidência. O jantar foi pretexto para uma conversa, não da treta, mas de verdadeiro alimento da alma. Recordámos as contradições do marxismo e do salazarismo e a sabedoria de Lévinas; citámos Kierkegaard e Hegel, entre outros, enquanto o corpo se entretinha com uma garrafa de “Montes Ermos” e uma posta à mirandesa. A alma ficou satisfeita, mas o corpo também não se queixou.
A memória da infância pregou-nos nova partida depois do espectáculo do António Feio e do seu compincha, ao encontrarmos a Conceição e o marido, que tiveram a amabilidade de nos acompanhar até à autocaravana e ali regressarmos ao passado da aldeia e da nossa família, agora dispersa um pouco por todo o lado, desde Peredo dos Castelhanos até Lisboa, passando o Atlântico para os Estados Unidos da América. Uns figuinhos secos e uns grãos de amêndoa foram-nos ajudando a compor o estômago com uma “Casa da Palmeira”, os homens, e um chazinho de cidreira, as mulheres.
Junto a nós, pernoitaram mais duas autocaravanas, que neste fim-de-semana elas andavam espalhadas por todo o lado, desde Pinhel a Figueira de Castelo Rodrigo e a Moncorvo.

Pôr-do-sol no Azibo
Na 3ª feira de Carnaval seria o regresso a casa. Mas ainda tínhamos o dia por nossa conta. Acordámos com o barulho das autocaravanas do CAS. Agora, sim, não havia dúvida alguma que se tratava dos companheiros do CAS. Para pena minha, quando acabei o pequeno-almoço já eles tinham ido a dar uma volta pela vila e não pude meter conversa com nenhum deles.
Antes de partirmos de Moncorvo, ainda deu para mais uma voltinha pela vila a comprar os últimos “regalos”, como dizem nuestros hermanos, e para voltarmos à Área de Serviço das Autocaravanas, a melhor do distrito de Bragança, que resultou de uma parceria entre a Câmara Municipal local e a então direcção do CPA, entre os quais eu fui mero instrumento de ligação. Na sua inauguração juntámos, pela primeira vez, mais de 100 autocaravanas no distrito de Bragança, tendo esse encontro ficado como um marco importante na história no autocaravanismo do distrito de Bragança e até de todo o Trás-os-Montes.
Depois, foi um cruzar permanente com companheiros das autocaravanas, desde Moncorvo até ao Azibo, onde almoçámos e esperámos pelo pôr-do-sol. Mais um “banho” de beleza natural.
Só depois é que regressámos ao descanso da casa … mas começando desde logo a pensar na próxima saída. É que isto das viagens em autocaravana, quando se entranham na nossa alma, é difícil viver muito tempo sem lhes fazer a vontade!...

César Urbino Rodrigues

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu que ando sempre à procura de novas ideias "cá dentro", fiquei com vontade de ir até essas bandas.

Paula Vidigal, uma autocaravanista