O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.
Quem o disse foi Mia Couto, esse grande cultivador e recriador da língua portuguesa e do imaginário africano. Não me consta que o escritor seja autocaravanista, mas se o fosse por certo seria capaz de escrever algo assim:
O que mais dói no movimento autocaravanista é a ignorância que ele tem de si mesmo. Confrontados com a ausência de tudo, os autocaravanistas abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que amarrará autocaravanas nos campings enquanto as vozes vão anoitecendo. É a liberdade que se consome na negação do prazer da itinerância em liberdade.
Afinal este é um tema recorrente: a alienação individual que tolhe e bloqueia essa força enorme do ser colectivo.
Alexandre Herculano bem lembrou que “querer é poder”. Mas para querer é necessário fazer esse penoso caminho de libertação do espírito que é romper com as amarras que nos alienam e torna prisioneiros de nós mesmos.
Para “querer” é necessário adquirir consciência colectiva, como teorizou Marx no século XIX e mais recentemente John Friedman com o seu Empowerment escrito no final do século XX. Justamente a consciência que continua a faltar aos autocaravanistas para que o querer se possa transformar em poder. Para que o sonho possa virar realidade, para que o nada dê lugar ao usufruto da liberdade de ser autocaravanista itinerante.
Claro que para isso precisamos de instituições que nos representem e que dêem voz ao nosso querer, mas de nada servem as instituições se elas não forem servidas por pessoas esclarecidas e conscientes da tarefa que têm pela frente. Enquanto individualmente nos entregarmos ao prazer da alienação abstendo-nos do sonho e do desejo de sermos outros... é a própria realidade que resta um sonho adiado.
O último número do Boletim do agrupamento de escuteiros do CPA é bem o espelho desta miséria em que definha o autocaravanismo: será que as pessoas não têm memória nem espinha vertebral? É por isso que cada dia que passa é maior o silêncio que recebem como resposta. Estranhamente, ou talvez não, permitem-se interpretar o ensurdecedor silêncio de desprezo como manifestação de apoio: O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.
Já tarda o momento da clarificação. Há vozes que vão anoitecendo, sentindo o vazio da vida que pára, sentindo que alguém nos arrasta por trilhos estreitos que conduzem a lado nenhum.
Autocaravanistas, acordai antes que seja tarde!
Raul Lopes
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