Certo dia fui surpreendido com uma bátega de água enquanto realizava uma caminhada com os meus filhos, a Catarina então ainda uma criança e o Ricardo no princípio da adolescência. Hesitámos sobre o que fazer: procurar abrigo ou prosseguir. Decidimos enfrentar a chuva diluviana. Acertámos o passo e lá fomos pisoteando as poças do chão alagado, ao mesmo tempo que improvisávamos uma cantilena tipo marcha militar com o refrão cantado em coro:
--Um, dois, três... andar à chuva é muito bom!
-- Trá, lá, lá... trá, lá, lá...andar à chuva é muito bom!
-- ... andar à chuva é muito bom!
Acabámos completamente encharcados, mas ainda hoje, uns pares de anos volvidos, quando acontece lamentar-me da chuva que cai, sou de pronto corrigido pela Catarina: Andar à chuva é muito bom, lembras-te?!
Nestas alturas recordo com prazer a sensação da chuva tocada a vento que me fustigava a face, recordo a cumplicidade partilhada com os filhos de cometer a loucura de fazer o politicamente incorrecto, enfim... recordo o momento como uma forma de usufruto da liberdade, como uma forma de solidificar uma relação de amor entre humanos, mas também como um hino de celebração da harmonia com a natureza.
Porque invoco agora e aqui estas recordações? Porque como autocaravanista acabo de viver outra experiência intensa... à chuva.
Preparámo-nos (?) para passar os últimos dias do ano a bordo da autocaravana. Como de costume a programação da viagem era pouco mais do que um estado de espírito: iríamos rumo a Andaluzia, o resto logo se veria. Aberto o mapa de estradas pensei em sair por Elvas e apontar a Córdoba, seguindo depois para sul. Todavia a decisão de última hora de visitar uns amigos em Évora conduziu à alteração de “planos”: sairíamos por Vila Verde de Ficalho e rumaríamos a Sevilha. Assim se fez, ou não fossem a improvisação e a flexibilidade atributos intrínsecos dos autocaravanistas.
Mesa de Natal ainda posta, lareira acesa e o calor de outros convivas presentes, fez o tempo voar. Já ia alta a noite quando deixámos a casa dos amigos, após termos degustado alguns bons vinhos alentejanos acompanhados do inevitável queijo regional (de vários odores e sabores) e de um bom paio tradicional.
Saímos à rua, deitámos um último olhar à arquitectura da Praça do Giraldo e calcorreámos a Rua da República em direcção ao Rossio, onde a autocaravana e o Jimmy nos esperavam para ai pernoitar. A arquitectura palaciana do percurso convida a um olhar mais atento do que aquele que a madrugada aconselha, mas não pude evitar deter-me por algum tempo fronte ao prédio de linhas simples de cujo varandim se proclamou a 5 de Outubro a adesão da cidade de Évora à Republica que nesse mesmo dia emergia no espírito dos portugueses como um silvo de esperança num país mais fraterno, solidário e justo.
A chuva que no curto percurso do centro histórico ao Rossio se nos tinha anunciado não tardou em cair. Plim..., plim... plim... Nada que nos impedisse de dormir tranquilamente, pelo contrário.
Manhã avançada lá partimos rumo a Beja, mas de “GPS” apontado a Serpa, onde o Molhó-bico nos esperava para almoçar. Localizado na zona SE da vila, na Rua Quente (junto à muralha) este restaurante serve, num ambiente a todos os títulos acolhedor, bons pratos da gastronomia regional alentejana, sem esquecer o requinte das entradas tradicionais. Há quanto tempo não molha o pão em azeite virgem de fino paladar?
De resto Serpa bem merece uma desapressada visita. Na alvura e humildade que exibe não consegue esconder a grandiosidade do seu núcleo histórico, de arquitectura árabe bem vincada, trazendo-nos à memória outras cidades do reino de Granada, como Córdoba, por exemplo.
O percurso até à fronteira proporciona-nos um momento de rara serenidade, em qualquer época do ano, pese embora a radical mudança policromática que o Alentejo ostenta. A planície apenas é entrecortada por pequenos cerros. Dos solos delgados brota uma vegetação escassa e de pequeno porte, onde pontificam as azinheiras e as oliveiras, centenárias umas, de cuidada plantação recente outras. De permeio, deambulando em liberdade, as vacas, ovelhas e porcos pretos pontuam o amplo espaço campestre. Aqui e ali algumas cegonhas residentes levam-nos a duvidar de estarmos em Dezembro.
Atravessada a fronteira a paisagem mantém-se, mas à medida que penetramos na serra o relevo torna-se mais acidentado e o coberto de azinheiras mais denso. O que mais surpreende agora é a intensidade do encabeçamento animal em regime extensivo. Os porcos ibéricos que antes víamos como elemento pitoresco da paisagem transformam-se agora em varas de considerável dimensão. Às vacas de carne juntam-se agora os touros. As ovelhas e as cabras passam a ser presença regular. Com esta actividade pecuária convive a economicamente pujante cinegética organizada em múltiplas coutadas de caça.
Desta mistura de actividades se alimenta a economia rural andaluza, cuja prosperidade pode aquilatar-se nos bares e “ventas” de qualquer dos seus pueblos, onde a par dos presuntos, enchidos, queijos, mel, doces, etc. encontramos recorrentemente uma extraordinária animação social, em flagrante contraste com o que geralmente observamos nos espaços rurais portugueses.
Caída a noite, decidimos evitar a problemática insegurança da cidade de Sevilha pernoitando num local a escassas dezenas de kms, precisamente no parque de estacionamento de uma dessas “ventas”: a Venta los Angeles, em Valdeflores.
Num cenário marcado pelas cabeças de veado e de javali exibidos na parede como troféus de caça, partilhámos com os locais o animado ambiente da “venta” enquanto degustámos um muy bueno viño Jerez.
A incessante chuva que nos havia perseguido durante todo o dia continuava a cair copiosamente. Paredes meias com a cerca que retinha meia dúzia de lamas, uma ovelha, um burro e alguns cavalos andaluzes, instalámo-nos na capucine da autocaravana prontos para dormir.
No silêncio da noite a que só a serra sabe dar a devida profundidade, ficámos a ouvir a chuva cair ali mesmo a um palmo da nossa cabeça. Plim, plim, plim... plim... plim... plim.
Ora doce e suave como a melodia de uma flauta, ora murmurando como um violino, ora soando forte e brusca qual correria de cavalos colina abaixo rumo ao riacho numa tarde de canícula, a chuva bateu sobre nós toda a noite, conferindo às penas que me aqueciam o corpo um prazer acrescido. Que impar sinfonia a da natureza!
Muitos foram os poetas que celebraram a chuva batendo nas vidraças e o vento fustigando os ramos das árvores. Certamente que os músicos lhe não foram indiferentes. Hoje compreendi melhor Vivaldi e Beethoven. Por certo eles viveram uma experiência de semelhante carga sensorial.
Ao som desta melodia que brota do breu da invernal noite campestre, a memória voou e transportou-me pelo passado para me desmentir: bem vistas as coisas eu gosto de chuva. Confrontado com a recordação de outros inolvidáveis momentos de prazer à chuva, onde sobressaem aquela noite em que um grupo de garranos do Gerês ameaçava deitar abaixo a tenda completamente alagada, aquela outra noite no camping da Serra da Estrela que obrigou os campistas de tenda a refugiarem-se na casa de banho (com os sacos-cama encharcados) enquanto eu usufruía da sensação de enfrentar a tempestade no conforto da autocaravana, ou ainda aquela madrugada de uma noite diluviana passada em Sesimbra com as gaivotas a acordarem-me enquanto se passeavam sobre a cobertura da autocaravana.
Naquele momento, enfim, compreendi que é um privilégio ser autocaravanista, poder gozar a liberdade que tal maneira de estar na vida nos concede. Afinal, dormir à chuva... na autocaravana, é muito bom!
Raul Lopes
1 comentário:
Chegou a minha vez de retribuir o elogio: li o seu texto e gostei.Mais não fosse porque fala de Évora (cidade, descubra você mesmo, que prezo)e ,porque da chuva parte para a balada da narrativa.
Paula Vidigal
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